Foto: Arquivos O Globo
Por Paulo Mileno
No esquenta da reta final de 2023, o Samba Abstrato escolhe o Adinkra Sankofa Gwa “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para atrás” como enredo, conforme assim a banda vem tocando nos últimos anos, ao exemplo dos desfiles da Grande Rio, a Tom Maior (de São Paulo) e a Beija Flor que reverenciavam a ancestralidade. Para além da desarmonia da Rainha de Bateria como vossa rítmica bateria, a temporada do Samba Abstrato de 2024 promete não decepcionar sua comunidade.
Nós somos “a vitória dos nossos ancestrais”. Queremos saudar nossos mais velhos e mais novos. Com essas aspas, aproveitamos para bater cabeça para o nego Paulo Lins nosso autor - roteirista - inspiração para “os nossos corpos - fantasias” de hoje até a quarta feira de cinzas de 2024. Teremos muito tempo até lá e, portanto, vai sobrar tempo para lermos a sua obra DESDE QUE O SAMBA É SAMBA (Lins, Paulo. 2012) cujo romance, dá para ler em um dia.
O Samba vem se tornando Abstrato desde a segunda metade do século XX quando as cartas começaram a ser dadas por mãos cuja palmas são desencontradas. Num samba atravessado, ladeira abaixo, a comunidade foi perdendo a autonomia de sua própria invenção, seja por quem preside a escola de samba, quem é o showrunner do carnaval’s business e quem dá nota nos quesitos.
No entanto, para quem sabe olhar para trás, nenhuma rua é sem saída. Conforme vemos no livro - bússola DESDE QUE O SAMBA É SAMBA, “Samba de verdade tinha que ter o sal do batuque dos terreiros de Umbanda e Candomblé (...) A boa era dá continuidade à batida que vinha dos países da África, das senzalas, dos quilombos, dos terreiros, do lundu”.
Não vai ser fácil. O samba agoniza, mas não morre. Conforme denunciou o Sargento Nelson:
Samba negro, forte, destemido
Foi duramente perseguido
Na esquina, no botequim, no terreiro
Samba inocente, pé no chão
A fidalguia do salão
Te abraçou, te envolveu
Mudaram toda a tua estrutura
Te impuseram outra cultura
E você não percebeu.
Estamos atentos aos rumos abstratos e surreais que o carnaval está se tornando, onde já não é surpresa que em plena Marquês da Sapucaí no Rio de Janeiro se toca de tudo nos camarotes, menos samba. Rola música eletrônica e festa Rave para a playbozada e gringos que vivem num mundo paralelo. Haja doce psicoativo para se manter acordado num eterno looping.
Joãozinho 30 em 1990 já nos alertava e criticava a abstração que o samba atravessava. “Hoje as escolas de sambas, são todas de branco. Brancos que eu diga, são da alta sociedade. Gente que não é do samba. (...) Quando estou dizendo branco, é toda essa invasão de sociedade, de estrangeiros, que não tem nada a ver com samba”.
A chamada infiltração dos ET’s do samba, os corpos estranhos que caíram de paraquedas, representa a cisão no ponto dentro da curva, de cima para baixo, da decadência das escolas de samba. A alta sociedade não larga o osso e todo ano quer desfilar, mesmo sem saber cantar e sambar.
Nesse sentido, a temporada de 2024 arcará com os custos de seu enredo ‘A Revolução Industrial Abstrata’, onde serão abordados os aspectos sociais e econômicos das ações das Musas Abstratas e do carnaval do Samba Abstrato. A mais valia da hora de trabalho laborada na quadra da escola, no barracão e nas ruas do território vai botar em cheque o papel da escola de samba com a evolução da comunidade.
É muito mais profundo tal aspecto social. É de acolhimento, pertencimento e autocuidado. O carnaval, foi nascido do samba de terreiro. De acordo com a jornalista e pesquisadora de cultura afro-brasileira Claudia Alexandre na matéria :
“O entrelaçamento de uma festa negra com as práticas religiosas estão na origem desse tipo de organização, a partir da década de 1930, chamada "escola de samba". 2023
No Rio de Janeiro, as escolas de samba mais tradicionais, como Mangueira, Portela, Império Serrano, Salgueiro, entre outras, nasceram sob a proteção de pais e mães de santo, dentro de terreiros de macumbas e de candomblés, e têm orixás assentados em sua fundação, além de membros da bateria também tocarem em terreiros", explica a especialista.
Carnaval é uma ferramenta antirracismo religioso, dizem especialistas. A relação com o candomblé é antiga e o compartilhamento de termos, expressões e costumes é comum entre a religião e a festa popular. Caroline Nunes. Terra Nós. 21 de fevereiro de 2023.
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Portanto, não é apenas “oba - oba”, assim como a religião de matriz africana, não é apenas um contorno religioso. O Carnaval vai para além da farra.
É uma obra do coletivo, da organização social, dos grupos culturais, dos mutirões de limpeza. Uma manifestação popular de baixo para cima, de gente que vive não apenas os 5 dias de carnaval. São pessoas que trabalham os 365 dias do ano, que conhecem o samba, a evolução e tem o fundamento.
O direito à cidadania plena a partir do lazer, a construção da identidade, o reconhecimento de suas raízes em consonância com a alegria contagiante da quadra e a força da arte, proporciona a transformação social.
Aí o mundo fascinante do crime é trocado pelo mundo fascinante do samba. De meninos largados à própria sorte, são transformados em músicos da mais alta performance física e artística, Mestre Salas e Porta- Bandeiras, sendo honrados com o Estandarte de Ouro.
Que a Revolução Industrial Abstrata provoque a consciência de algum artista, de alguém que saiba levantar a anima do povo, conforme dizia Joãozinho Trinta, quiçá, ouça Deus, algum militante de veia revolucionária acenda o pavio da agitação popular e as massas nas ruas atrás dos blocos tomem o poder e devolvam ao povo. Somente o povo faz o maior espetáculo da Terra e somente ele pode erguer a Nação.