Mãos de chocolate



O impacto da supremacia branca no design feito para internet ou como se representa uma mão humana?


Escrito por Luanna Teofillo


Eu não sou designer. Minha experiência na Tecnologia está na área de Produto onde atuo a quase uma década. Além de Product Manager também sou uma “Pensadora de Produto”, o que me permite expandir e abstrair ideias e conceitos para além dos roadmaps e escopos diários. Escrevi sobre filosofia de produto no livro “Gestão de Produtos como você nunca viu” do coletivo Mulheres de Produto.


E numa dessas observações cotidianas de onde saem as grandes questões filosóficas, comecei a refletir sobre emojis. E foi quando encontrei o texto Design Thinking is a rebrand for white supremacy, escrito por Darin Buzon,  que uma lâmpada se acendeu na minha mente: como tudo na nossa sociedade, emojis são potencialmente racistas pois são baseados em conceitos de supremacia branca. 


Calma, antes de ativar os ânimos por si só exaltados e aumentar a latência do gatilhode fragilidade branca que pode estar presente na alma de quem lê este texto, vamos falar sobre supremacia branca e design.Neste artigo vamos discorrer sobre como o estado atual do design, principalmente o design feito para internet, é a atualização digitalizada do status quo do racismo estrutural. Querendo ou não.

Que cor é uma mão humana?


Designer é uma pessoa branca. Essa frase faz todo o sentido quando vemos as áreas de design das empresas de tecnologia, ou pelo fato de que certamente (ou esperançosamente), você tenha se lembrado de uma única pessoa preta que conhece e que é designer, para trazer a exceção necessária para confirmação da regra designer é uma pessoa branca. E como na Era do Conhecimento as coisas serão conhecidas, vamos refletir sobre mais um problema que a disparidade social e racial traz para a usabilidade e inclusão em produtos digitais.


O emoji é uma forma avançada de comunicação (na real um rebranding dos hieróglifos egípcios), que ultrapassa a linguagem oral e escrita e através de representação gráfica de emoções ou complemento para uma mensagem. E dentre as centenas de emojis que existem, o famoso emoji de joinha ou thumbs up, é um dos mais populares, seguido de seus spin offs paz e amor, hang loose, high five, entre outros símbolos feitos com as mãos. Vamos observar o caso do emoji de joinha e seu par de inspiração: uma mão preta com o polegar para cima:




Vejamos: Na foto, um joinha real tem duas cores: marrom no dorso e “branco/claro” na parte de dentro. Já o emoji tem apenas uma cor, dorso e palma marrons como uma mão de chocolate. Que me fez lembrar essas mãos aqui:



Estas são as famosas mãos de chocolate belga, inspiradas no hábito do genocida  Leopoldo II, que costumava cortar as mãos de pessoas escravizadas no Congo como forma de punição. Aparentemente os belgas não veem problema nenhum em cortar as mãos de pessoas pretas a ponto de transformar as mãos de chocolate em um símbolo da cultura belga. Pausa na semiótica. Voltemos a falar sobre emojis.


Quando um emoji simboliza apenas os dedos e a parte de fora da mão, uma mão de cor branca pode ser graficamente representada pela mesma cor, já que a palma e o lado de fora tem, em tese, a mesma cor. O padrão do emoji amarelo é baseado no padrão de uma mão branca com o lado de fora e a palma da mão sendo representadas pela mesma cor. Quando se representa um mão preta da mesma forma, ou seja, a mão inteira da mesma cor, como se fosse uma mão de chocolate, muito dirão que é apenas uma abstração, mera representação. Mas diante de um olhar crítico,  certamente se trata de desumanização, ou branquização, uma vez que se aplica um conceito branco para descrever algo não-branco.


Baseado no entendimento de pessoas brancas sobre como uma mão deve ser representada, pretos e não-brancos, são afastados de suas caracteristicas humanas para seguir um padrão de reconhecimento puramente branco. Ou seja, uma mão humana é uma mão branca, o resto é diversidade e share de mercado.








O design colonial


Uma nova roupagem para o nem tão novo design neo-colonial, é a aplicação das ideias racistas coloniais em sistemas de design, de forma muito sutil e naturalizada, quando por exemplo se proclama o design como algo “neutro”, como se o estilo viesse separado do conteúdo e forma e não fosse feito por humanos e suas experiências de vidas e ideologias. Um sistema de design é uma série interdependente de decisões que treina os usuários para associar padrões, conceitos, cores, formas, texturas a determinadas ideias e resultados e a executar pensamentos e ações a partir de input gráficos. Eles não apenas ditam a experiência do usuário face um sistema, mas também a experiência humana.


Antes de haver diferenças de cores para os emojis de mãos, o amarelo Simpson representava toda a humanidade. uma mão em cor clara, com a palma e o dorso da mesma cor representa as mãos de todas as pessoas na terra e transforma todas as nuances da humanidade em um código visual uniforme, o que é exatamente o oposto da experiência humana e toda a sua variedade e diversidade. Na supremacia branca, a branquitude é o padrão.


As mãos de chocolate passaram praticamente batidas nas celebrações pela inclusão de mais opções de cores nos emojis, mas muitos intelectuais e designers perceberam o óbvio, que sim, as escolhas de design são a representação gráfica do racismo estrutural. Estão aí o AirBnB e a Kodak para não me deixar mentir sobre como escolhas de design propagaram o racismo em uma plataforma de alojamento ou como uma escolha técnica fez com a pessoas pretas não fossem representadas corretamente em suas cores por filmes fotográficos. 


No entanto, o design centrado no usuário abriu caminho para que os preconceitos raciais se manifestassem nos produtos de consumo e os designers e produteiros  não refletiram como suas práticas permitem tais manifestações aconteçam.  Repetidas vezes, a tecnologia moderna não conseguiu cumprir os padrões de igualdade e diversidade dos quais tantos empresas fazem questão de dizer que apoiam e se surpreendem quando são tomados por situações racistas no cotidiano do produto e dos usuários. Precisou da luta antirracista dos entregadores de aplicativos de delivery para que as empresas, e seus times enormes de tecnologia, parassem para refletir sobre como racismo, deles mesmos e dos clientes, impactam na entrega de valor do seu produto. Muitas vezes, produtos com preconceitos raciais são criados involuntariamente como subproduto de anos e anos de racismo sistêmico e internalizados pela cultura. Este é um grande problema que nós, profissionais da tecnologia precisamos começar a abordar de forma mais agressiva. Ser antirracista é a única opção.


Na palma da mão


Calma, com este texto eu não estou sugerindo o cancelamento das mãos de chocolate ou qualquer emoji, pelo contrário, são frutos da luta diária pela representatividade e extremamente úteis para a comunicação cotidiana.


Na verdade, provou-se até ser potencialmente danoso para uma pessoa preta desafiar, subverter ou mesmo refletir sobre padrões pré-existentes. Mas essa reflexão se trata de um compromisso: se de fato há o interesse de desmantelar a supremacia branca (para a felicidade de todas as pessoas), significa trazer ideias em questão,  desmantelar padrões e ideologias profundamente enraizadas baseadas em preconceitos e que são difundidos por meios de comunicação, educação e até da tecnologia. Significa questionar cada parte de nós mesmos para ver o mundo como deveria ser, e não como foi ensinado a ser.






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