"Eu não quero mais você aqui. Você não serve para esse terreiro”

Por: Simone Graziele


Foi com essas frases que eu fui desligada do terreiro que eu fazia parte. Motivo: um pacote de inverdades, que inclui uma suposta falta de respeito pelo sacerdote e entidades, junto com justificativa mais patética que já ouvi na vida - não ensinar aos brancos sobre racismo. Como se eu fosse obrigada a ser professora ou enciclopédia preta sem receber pró-labore de um bando de adulto mimado que diz querer sair da zona de conforto, mas só se todos os privilégios forem mantidos. 


Aparentemente esse relato pode parecer discurso de filho ingrato que cospe no prato que comeu, como muito pais de santo contam por aí em plenos pulmões, sendo que na verdade é preciso compartilhar desabafos honestos para que sejam documentados. E não importa o quanto isso me exponha a pauladas. Nunca estive tão preparada para o combate.

Terreiro é quilombo, é comunidade, é o lugar que abraça a diversidade. Mas viver o seu cotidiano é encontrar o antônimo de tudo isso. Vaidade, intolerância, opressão, machismo, misoginia, xenofobia e, claro, racismo. Cobram subserviência de uma mulher preta num espaço de fé e onde a ancestralidade preta e africana pulsa, é proibido ser inteligente e dominar vários assuntos. O papel é apenas admirar um monte de gente invejosa e sem repertório, disposta a tudo para ganhar o vazio de uma falsa atenção. Nesse último ano eu vi o quanto vivemos num estado de perda tão grande que a galera quer ganhar em algum lugar até em um terreiro onde a fé deveria ser maior do que o ego. 

Depois de quase dez anos, o dia mais feliz que pude viver foi no meu batismo de surpresa, mas eu não sabia que naquele momento eu teria que assinar uma sentença: silenciar o meu pensar e padronizar minhas atitudes. Eu não poderia ser apenas educada, teria que distribuir falsos sorrisos, dizer a todo tempo “eu te amo” para um monte de gente oca, jogar confete em pessoas que falam ‘água’ com palavras bonitas e enfeitadas, ser pressionada a me aliar a pessoas que só queriam me usar como fantoche, melhor, token

O campo de guerra se tornou ainda mais visível quando decidi não escolher personagens errados para serem protagonistas da minha história. Gritar a todo tempo que Iemanjá não é branca, que orixás são ancestrais africanos e pretos era ofensivo demais para o ouvidos dos médiuns brancos. Veja bem: apagam tudo que é preto, roubam, se apriopriam e ainda se sente vítmas quando eu não admitia racismo.  Nesse momento ganhei o título de derespeitosa, porque ‘orixá é energia e energia não tem cor’; agressiva porque tenho que conversar soltando libélulas pela boca, porque a branquitude quer ditar o tom de como tem que ser dito; e arrogante, claro! Porque ser inteligente é afronta para os fracos de feição. Porque era mais fácil me culpabilizar pelo não entendimento do que repensar os próprios atos.  

Privilegiar pessoas brancas e suas vontadas dentro de um terreiro é um dos tentáculos mais cruéis do racismo. É uma incongruência muito grande se deparar com essa faceta ao pisar no solo sagrado, mas quando alertei sobre esse fato passei a ser atacada em público. Somente mulheres negras de renomes, tais como: Mariele Franco, Bell Hooks, Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Sueli Carneiro, Joice Berth, Djamila Ribeiro, Erica Malunguinho e muitas outras personalidade, pensadoras e escritoras pretas brilhantes eram super consideradas. Mas a minha voz teria que ser calada – a não ser quando permitida, quando me deram espaço para palestrar, porque aí sim eu prestava. Eu me perguntava como podem olhar tanto para fora e não me exergar dentro? Silenciar uma pessoa é uma agressão sem tamanho, principalmente quando se trata de uma mulher preta comum. Era díficil um diálogo honesto sobre as práticas racistas e todo discurso enfático, posicionamento político, temas sociais debatidos nas aberturas das giras eram só palavras repetidas a exaustão dos livros, como um jogral e toda opressão do lado de fora adentrava o portão do terreiro. E isso doia demais. 

Ser filha de santo é chegar ao terreiro nua, disposta, aberta, desapegada, entregue. E, por isso, qualquer tipo de agressão tornava-se ainda maior e trazia consequências emocionais graves quando ocorria lá dentro. Afinal, a gente acha que em um espaço de fé  vai ter pessoas focadas no espiritual, nos ensinamentos, nas experiências, nas vivências. E estavam. Mas também queriam ser destaques de um palanque imaginário. Para quem tem uma consciência racial apurada como eu percebia rapidamente que o foco por aplausos, curtidas e seguidores eram mais fortes do que a busca por uma transformação. E era esquizofrênico viver essas duas realidades no mesmo local e num curto espaço de tempo. Mas eu resisti. 

O que adiantava um grupo de apoio para mulheres se nos dias da gira era dito não quer ser cambonada por determinada médium porque odeia ela? Ou ao cruzar com essa médium num corredor, dá uma ombrada como se tivesse 13 anos e vivendo eternamente no ensino médio? Pior: o que adiantava dizer que vive para empoderar outras mulheres, mas faz tudo para excluir, oprimir, expulsar, dizendo que dorme na mesma cama que uma entidade chefe e que tem plenos poderes sobre o terreiro por esse motivo. Terreiro são cheios de sinhazinhas, principalmente aquelas que esquecem que o respeito deveria ser a premissa dos religiosos. Sinahzinhas maldosas, aquelas que sabem que pior do que se sentirem menos bonitas têm a certeza de que são menos, bem menos interessantes. Elas derespeitam tudo e todos para manter a honra e glória branca, alva e impecável. Mas em dias especificos, não hesitavam em meter um turbante, a camiseta Dandaras do Brasil e dizer que são mulheres pretas em ação.

Chacota! 

Minha fórmula de sobrevivência foi o silêncio e o desprezo. Chegava focada no meu propósito, na minha evolução, no meu encontro com minha família espiritual.  E deixava os outros serem do tamanho que realmente são: pequenos e se degladiando sozinhos. Aprendi que o silêncio é uma arma poderosa e que domino bem essa forma de proteção. Ainda assim, minha presença incomodava. Muito. Eles deveriam saber que filha de guerreiros vai até depois do fim, mas ainda assim me levavam para outras esferas de ataques. Só que eu sou a resistência, excesso de ego pesa, mas não me quebra. Eu não desistia. A raiva deles, obviamente, aumentava. 

Eu guardei minhas feridas e dores e me fiz forte em busca de uma resposta muito superior e que muitas as vezes o meu não cumprimentar ao sacerdote era somente uma interrogação velada da conduta dele. É necessário que pais de santo se revisitem nas suas humildades porque também são seres humanos como seus médiuns. Ou seja, a real necessidade de se trabalhar, de se moldar, de se contornar e de entender que cada filho de santo tem um perfil é essencial. Não tem como uma pessoa se adequar a tudo aquilo que o dirigente quer, como se fosse uma fôrma para sair tudo igual. Há, na verdade, a necessidade de respeitar tudo aquilo que é conversado e exposto, o dever da liderança é procurar entender, porque nem sempre quem se cala, se cala por conta de si próprio; às vezes se cala por conta da opressão externa. 

A condução de conflitos por meio da expulsão com uma reflexão feita através da fofoca é uma análise muito fraca para interromper a missão espiritual de alguém. Sem contar que os privilégios brancos que deveriam ficar do lado de fora da porteira, entram no barracão com mais força. Não tem Exu que trabalhe na linha do branquismo para impedir isso, pois sabemos bem que entidades não interferem no livre arbitrío. E o palmitismo mental bloqueia a visão do homem preto que permite os mandos e desmandos de sinhazinhas que ‘tudo tem’ mas nada são. É triste ver que racistas estão por todo lado e tomando poder sobre a chancela de uma pessoa preta. 

Percebeu que pessoas brancas até em solo sagrado são nocivas? Como contaminam a religiosidade e a transformam no vazio de egos? Desfrutar do pensar da resistência negra sem a presença de pessoas pretas é a fórmula milenar de brancos. Eles não se contentam em fazer textões e vídeos nas redes sociais, eles sempre vão tentar respaldar essa falsa identidade. Primeiro tentando se agregar com pretos, depois tentando falar por nós e, por último, roubando o que é nosso por direito. E eu não permitia ser apenas objeto de estudo e tal atitude foi vista como afronta. 

Eu carrego a herança genética de todos os meus ancentrais pretos e africanos que se manifestam em meu corpo por meio da  cor da pele, olhos, textura do cabelo, comportamento, entre outras, e essa expressão pode ser acentuada pelo meio que eu vivo, como um terreiro. Eu sou instrumento dos meus. Quem acredita realmente em ancestralidade sabe a força não apenas simbólica, mas também concreta a qual ela tem sabe que humilhar uma mulher preta não faz parte desse princípio. É a ancestralidade que ensina a importãncia de todas as fases da vida – da criança e ao ancião. Por isso, é incoerente ignorar a minha existência e postar foto da mãe e avó pretos com legenda linda de amor e chicotear os demais, bater cabeça para todos os pretos e pretas velhas e saudar com ‘adorê as almas’ para no fim dizer que eu não sirvo mais. Ignorar a minha existência é renegar a todos eles. 

Vocês me batem. Eles que choram. 

Vivi alegrias de mais de mil vidas. Vivi tristezas na mesma proporções. Coloquei sementes de girassóis em terrenos baldios inteiros, porque é curvado de dor que se planta flor. Entendi que a Umbanda é uma casa grande de amor onde a gente cabe confortalvemente por inteira. Eu sou um templo vivo, ninguém sabe o que eu carrego no peito e é lá que mora a gratidão. Gratidão é mais que dizer, é sentir. E eu sinto. Agradeço cada contato com cada alma que cruzou o meu caminhar naquele lugar e tenho total certeza que muito das minhas mudanças vieram dessa trajetória. Muitos vieram comigo, muito de mim também ficou por lá. 

Entrei grande, saí imensa. E não tem nada que me limite ou impeça o meu crescer. 

Mas a real é que nenhum lugar, nenhum grupo, ninguém que dúvida da minha índole ou que coloca a interpretação errônea sobre minhas atitudes merece a minha presença. Nada. Absolutamente nada me faz lutar por algo que não seja leve e suave de se viver. E de todas as lições é essa a que mais me ensina. Outra certeza é que que na vasta humildade, na vasta sabedoria e na vasta energia da espiritualidade eu sei que ela não vai deixar que eu fique caminhando sozinha porque eu nunca irei caminhar sozinha. Nunca. 

Ogum, meu pai, eu sou a sua cara e é ele que sempre me mostra que há um caminho e que não permite que desmerecem os meus passos. Iansã, minha mãe, ela sopra no meu ouvido que eu sou o vento que ninguém consegue segurar e me ajuda a construir em alicerce bem feito o meu ilê. Exu, aquele que tudo sabe, que tudo vê, que sempre me sorri feliz e orgulhoso pela transformação que me rege. Pombagiras Rainhas que fazem eu enxergar a vida com o coração. E o coração com juízo é infalível nas percepções da verdade. Maria Rendonda, minha Bisá, que  me ensina sobre comportamento, me dando o tom da música, o toque da dança, a leveza do passo certeiro e me dá a mais belas das certezas: ainda há muito para existir.



:: Efigenias ::

Entrei grande, saí imensa