Eu disse pro DJ que ele era racista

Uma anedota cotidiana sobre racismo, branquismo e fragilidade branca




Era a festa de final de ano da agência. Uma festa modernete como qualquer outra cujo tema era pink flamingos. Hipsters de classe média com camisas floridas produziam conteúdos para redes sociais enquanto a pista permanecia vazia.

O DJ era um dos redatores da agência. O som estava ruim.  Aquele tipo de set pretensioso de quem finge não se importar mas  passou dias escolhendo a pior sequência possível de músicas para um público blasé numa festa open bar de cerveja artesanal e dois tipos de caipirinhas de frutas e vinho tinto.

Entre uma escolha sofrível e outra, as pessoas começam a se aproximar da pista e eu fui uma delas que acreditaram que tudo poderia melhorar. E é neste momento que algo muda a trajetória da vida daquelas pessoas: o Dj tocou uma música racista.

 Painel BAP


Eu era o #MOBF na ocasião e todos olharam pra mim constrangidos. Droga, o racismo chegou, ele sempre chega.  Motivada pela cerveja artesanal, dois tipos de caipirinha de fruta, vinho tinto e a raiva que se sente de alguém que além de ser um péssimo DJ ainda tem a audácia (para dizer o mínimo)  de tocar uma música racista numa festa chata, eu decidi agir.

Ao encontrar com o DJ  na fila do vinho branco eu falei: você tocou uma música racista.

Tsc tsc tsc. Big mistake.

The winter is coming



Começa a transformação. De um mero DJ medíocre que ouviu um feedback negativo ele se transforma em um cavaleiro da noite. Sua pele começa a ressecar gradativamente enquanto clichês e chorume saem de sua boca através de palavras e perdigotos que saltam diante dos meus olhos. Eu estava perdida.

“Minha bisavó é preta”
“Eu não sou branco”
“Nem todo branco é racista”
“Eu não sabia que uma música com letra abertamente racista era racista”
“Eu toco música racista, mas não sou racista”
“Você está sendo racista dizendo que eu fui racista”

A cada frase a acidez aumentava. Até que seu seu corpo totalmente seco e insensível ao frio, tirou das profundezas de sua memória neandertal o golpe final: você quer que eu te peça desculpas publicamente?  Leia-se: você quer que eu chame os outros brancos para saber o que eles acham de uma preta dizer a um branco o que ele deve fazer?

Fodeu. Ele vai chamar os outros.


Depois da missa vamos enfocar um negro






O clima ficou tenso. De súbito eu parecia estar em Montgomery, no grande estado do Alabama  em 1893 numa daquelas tardes ensolaradas do sul norte-americano quando um grupo de brancos (no caso meus colegas de agência) se juntavam depois da missa para decidir se iriam enforcar ou queimar um preto. Rapidamente um grupo já havia se formado.  Eles olhavam e apontavam com suas tochas morais, “peguem a negra!”, diziam com seus olhares. O DJ ao centro instruia o grupo, algo iria acontecer. Uma mulher branca não se conteve e veio apontando o dedo na minha direção, gesticulando e cuspindo: “Meu amigo não é racista”, gritou enquanto se aproximava de forma intimidadora. Ela era feia e eu senti que precisava sair dali.


A fragilidade branca mantém o racismo em paz



A conduta  gregária é a tendência psicológica que as pessoas demonstram quando estão em um grupo de realizarem atos alheios a seu padrão de comportamento como forma de reforçar a identificação com o grupo. Engajado em nome do seu conforto racial e com um gorro branco, qualquer diretor de arte desconstruidão rapidamente se transformar em um ferrenho racista desencadeado pela chamada “fragilidade branca”. O termo foi cunhado pela Doutora Robin DiAngelo, uma professora branca de educação multicultural da Westfield State University em seu livro “White Fragility: Why it’s so hard for white people to talk about racism”, em tradução livre “Fragilidade Branca: Por que é tão difícil para pessoas brancas falar sobre racismo”, da editora Beacon publicado este ano.

Depois de anos liderando treinamentos de diversidade e inclusão em grandes empresas nos Estados Unidos, ela percebeu que havia um padrão de comportamento e linguagem engajado por pessoas brancas (o que chamamos de BRANQUISMO) que impediam o avanço no debate de estratégias anti-racismo pelos brancos. Coitadismo, dramatização, histrionismo e agressividade  são padrões previsíveis quando se questiona o comportamento racista de um branco nas estradas do Alabama, num treinamento de diversidade ou numa festa cheia de publicitários.

Fragilidade branca é então um estado no qual uma quantidade mínima de tensão racial se transforma em algo intolerável, desencadeador de uma gama de ações defensivas incluindo demonstração de sentimentos como frustração, baixa tolerância, medo, raiva e comportamentos agressivos que que combinados com conduta gregária e open bar numa festa de empresa podem levar a atos sérios de violência como é na dinâmica da fragilidade branca.

Por que será eu achei que seria uma boa ideia alertar um branco que ele estava sendo racista?



Pessoas brancas vivem num meio sócio-cultural que os protege e isola de ideias e pensamentos relacionados a sua raça, seu comportamento e sua cultura com relação a pessoas não-brancas. Um branco se sente confortável em seu papel pois nunca é confrontado com a ideia de que é branco e que alguns predicados são característicos de sua condição. Sem capacidade ou interesse de se auto-analisar e tolerar o desconforto causado pela desconstrução de uma educação racializada, essa hiper-sensibilidade de pessoas brancas ao enfrentarem o racismo pode tanto causar a alienação e apatia, quanto a segregação e a violência.

Eu assumi que o DJ ao fazer a escolha de tocar uma música racista em uma festa, poderia ter feito de forma inconsciente ou sem ponderar os efeitos daquela escolha.  No auge da minha coragem alcoólica eu expliquei pra ele que tal canção, além de não ser adequada para aquele tipo de evento, já havia sido alvo inclusive de decisão judicial e demonstrar meu repúdio por este tipo de manifestação racista é uma oportunidade de numa próxima vez ele não ser racista. Estas foram minhas últimas palavras antes de dois colegas vieram me proteger enquanto esperava meu Uber, eu estava em pleno plano de fuga.

Corra!




No dia seguinte quando entro na agência ouço os sussurros. As pessoas me olhavam como se fosse meu primeiro dia de aula em uma escola branca na Georgia. Colegas vinham até minha mesa. Alguns em apoio, outros querendo saber o que aconteceu e muitos impressionados com a minha atitude, mas de forma negativa: O que deu em você? Por que foi dizer para um racista que ele estava sendo racista?  O que passou pela sua cabeça?

As sinhazinhas já não olham mais nos meus olhos nas reuniões intermináveis. É duro manter a postura e profissionalismo quando o que se quer de verdade é levar a negrinha pra fora e chibatar até ela aprender que não se fala sobre racismo.

Não preciso dizer que não trabalho mais nesta agência, óbvio. Já o DJ racista e sua amiga feia seguem lá, felizes com sua chibata moderna e a certeza de que não fica impune quem ousar tocar no direito que um homem branco tem de ser racista, sempre e como quiser.



:: Efigenias ::

Racismo, branquismo e fragilidade branca






ps.: Você deve estar se perguntando: qual música desencadeou tudo isso? A música é todo toque no cabelo inapropriado, as expressões e piadinhas racistas, os clichês recheados de chorume repetidos à exaustão e todas as micro agressões que brancos fazem com pessoas não-brancas.  Se depois de tudo isso, você ainda achar importante saber qual era a música, lembre-se que é a fragilidade branca que deixa o racismo em paz.