Mas você vai dar conta?

A distinção nas práticas de recrutamento empresarial
Certa vez presenciei em uma empresa o debate sobre se deveria haver ou não um programa para recrutar portadores de capacidades especiais. Trabalhávamos todos sentados diante de nossos desktops, o edifício onde ficava a empresa contava com aparato para receber pessoas cadeirantes ou deficientes visuais, não havia nenhuma barreira para contratar alguém que precisasse de algum apoio adicional para se integrar. Mas a frase que mais se ouvia do RH era: Mas será que um cadeirante vai dar conta?

Enquanto a gerente de RH justificava de forma fantasiosa que poderia haver um incêndio ou um terremoto (?) e uma pessoa numa cadeira de rodas não poderia sair do prédio, a verdade que ficava cada vez mais aparente naquela mesa era: “nós dizemos que sim, mas a verdade é que NÃO queremos incluir um cadeirante aqui. Nós não daremos conta”.

Outro ponto que parece incompreensível para alguns RH de empresas é a dupla jornada. Algo muito comum na vida de artistas, empreendedores e profissionais liberais que ainda não conseguem se manter apenas da prática autônoma de seu ofício. Este perfil é muito comum entre profissionais pretos e afroempreendedores que ainda não possuem uma rede social e econômica de apoio para o desenvolvimento de seus negócios e que se dispõem de realizar uma dupla jornada para realizar seus sonhos.

A distinção e a discriminação


A distinção é um termo cunhado pelo filósofo Pierre Bourdieu para descrever as marcas e valores sociais que fazer com que as desigualdades materiais se efetivem na sociedade. O habitus (modo de ser de um indivíduo ligado a um grupo social, que se relaciona especialmente com a aparência física), as diferenças de capital cultural (legado familiar) e patrimônio social (condição econômica) são usados de forma discriminatórias por muitas empresas ao contratarem seus funcionários.

As formas de classificação e desclassificação das pessoas e de valores culturais são aplicadas em todo e qualquer ponto da distribuição da manutenção das desigualdades. As experiências incorporadas do mundo profissional e a adesão às relações de ordem aceitas como evidentes pelo senso comum, definem os limites, as posições e as pessoas que objetivamente podem ou não fazer parte de determinados locais. É através da distinção que se decide quem vai dar conta ou não.

Quem não dá conta?


Periféricos porque moram longe, mães porque têm filhos, pretos porque não compartilham dos mesmos códigos culturais, portadores de capacidades especiais, imigrantes, transsexuais, pobres, gordos... São quesitos de distinção que sobrepõe critérios técnicos e profissionais na hora da contratação e que mantém a exclusão de determinados grupos sociais das empresas, pois quem decide quem dá conta já na entrevista de emprego, são os que “dão conta”, o que não precisam pegar duas conduções para chegar ao trabalho, os que não tem ou não se ocupam do cuidado dos filhos, os que não precisam sequer lavar suas roupas ou cozinhar sua comida são os escolhidos e determinados como os que dão conta.

Enquanto os privilegiados acham que não daremos conta de realizar um bom trabalho, que não temos a capacidade de aprender e nos adaptar, muitos tantos esperam por oportunidades que não vão chegar se as empresas continuarem a falar de diversidade, mas sem nunca ser enfrentar a realidade de ser diversa de fato. A distinção é uma denúncia contundente e um chamado à reflexão do modelo de compreensão dos mecanismos sociais e culturais e a repetição que faz as empresa chegarem sempre aos mesmos resultados: ambientes profissionais homogêneos e com pouca variedade de grupos humanos.

Num país tão desigual, onde a detenção dos meios de produção é privilégio para poucos, a empresa privada tem uma função social e humanista. Dar oportunidades para as pessoas, garantir a subsistência, desenvolver talentos deve fazer parte da missão de todas as empresas. Do alto de seus privilégios eles dizem que não daremos conta sem conhecer nossas necessidades e capacidades. E eles, darão conta de serem provados do contrário?


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A distinção