Por que ninguém desvia de mim?


Por que ninguém desvia de mim?

by Luanna Teofillo


Era antes do meio dia quando abri o New York Times e li a seguinte manchete: Was that racist? Era um artigo na coluna de Greg Howard, repórter do jornal. A matéria falava como Greg percebeu que mulheres brancas não desviavam dele nas calçadas de NY. Tomei um susto. Fiquei uns segundos em transe quando vi uma das grandes questões da minha vida sendo exposta num jornal de domingo: por que as pessoas não desviam de mim?


Eu sou preta. Aquele tipo de preta que se nota de longe porque por questões da loteria humana calhou de transitar em lugares majoritariamente brancos. #MOBF desde a adolescência me me pergunto porquê em alguns locais as pessoas simplesmente tem como previsto o fato de que eu me moverei para evitar ir de encontro a elas? Por que esperam que eu faça algo que elas também podem e devem fazer? Por que tem que ser eu?

Pensei em várias hipóteses, e a conclusão que cheguei é que por algum motivo ainda desconhecido, eu estava em um looping tempo-espaço, o que impossibilitaria a transição precisa de uma camada quântica a outra o que poderia ocasionar uma colisão no processo de sincronização. Era a única explicação possível.

Painel BAP

Mas não era nada disso, era o racismo. Aquele sutil, que se aprende em silêncio. Que age desapercebido e que representa boa parte das relações raciais e a convivência entre pretos e brancos.

A calçada é o guarda-chuva da cafeteria

A relação entre os corpos pretos e brancos, assim como tudo na vida, é baseada em conceitos e teorias racistas que nascem da ideia de superioridade dos brancos e a servidão intrínseca do preto e o lugar que nos cabe.

Uma vez que na frente de um café na branca Oscar Freire havia um segurança reduzido a carregador de guarda-chuva que levava cada branco para seu carro durante uma forte chuva. Ele se molhava todas as vezes, porque assim como aquelas calçadas, aquele guarda-chuva também eram feito para corpos brancos. Seu corpo preto se molhava e todos pareciam estar com a sensação de dever cumprido, afinal, nada mais natural do que um corpo preto se molhar para que as patricinhas e seus cachorros pudessem seguir intactas até seus carros. A calçada é tipo o guarda-chuva, alguém tem que se molhar.

Como não pensei em racismo? Como o racismo estaria em todos os aspectos da minha vida menos nas calçadas?  Poderia ser que eu estivesse delirando, afinal, é apenas a calçada. Quis tirar a prova e comentei no meu Facebook.

Para minha surpresa, amigos pretos disseram que já haviam percebido e que tinham atitudes, rotinas e estratégias para se impor no espaço público. Um disse que já tinha uma cara certa para esses momentos, minha prima falou que brancos não desviam nem de crianças pretas e outros comentaram que os mesmo acontece em outros locais públicos. Todos demonstravam bastante familiaridade com o tema. Fiquei chocada. Brancos não desviam de pretos.

Eu entrei num tipo de aflição existencial. Me surpreendi como nunca tinha conversado com esses amigos sobre isso mas naturalmente a conversa se instalou. Eu esperava aquela reação de praxe, “isso é coisa da sua cabeça”, “agora tudo é racismo”, mas não, ninguém para me dizer que era apenas impressão minha ou que depende. Aparentemente as relações raciais nas calçadas é um assunto que parecia silencioso mas que pairava em nossas vidas. É daquelas coisas que o racismo ensina na sutileza mas nunca se esquece.

Passando na frente de um colégio famoso em São Paulo, frequentado pela elite branca paulista, um grupo de adolescentes veio em minha direção. Não acredito que não vão desviar, pensei. São bem educados filhos da classe alta paulista, aprendem alemão, viajam para Disney e desde pequenos sabem que o preto é  tem que desviar deles na calçada e foi o que aconteceu. Eles não desviaram.


Eu decidi não desviar

Daquele momento e diante tomei a decisão de adotar o princípio da reciprocidade para o trânsito nas calçadas: Desviar é ato de todos. Só desvio se a outra pessoa também se mover.

Na primeira esquina, esperando o farol abrir vi meus primeiros oponentes. Um  homem e uma mulher brancos que me olharam com aquele olhar que brancos olham uma mulher preta quando ela está em um lugar onde pra eles ela não pertence. É um misto de admiração excessiva, dúvida, desprezo e racismo. É um olhar do tipo: você pode estar aqui, você pode estar vestida assim com uma bolsa cara e um casaco elegante mas nunca vai deixar de ser preta. Sabe este olhar?  Estamos te vendo e deixando claro que não vamos desviar.

O farol abriu, eu tinha tomado minha decisão. Ela veio, olhando pra mim, estava chegando perto e não demonstrou a menor intenção de desviar um centímetro que fosse quando aconteceu: trombamos.  Senti minha bolsa quase voar mas segui. Ela se virou e gritou: Por que você não desviou? Como quem diz: por que você não abriu espaço pra mim? Por que você não fez o que era esperado que você fizesse?

Eu falei: se você me  viu, por que VOCÊ não desviou? Ela ficou em silêncio olhando feio, aquele olhar do gelo e eu segui com o coração disparado pela trombada.

Algo havia acontecido. Eu não desviei e tudo mudou. Prossegui. Levei muitas trombadas esse dia mas vi algo que nunca tinha acontecido: as pessoas desviaram de mim. Ao invés de sair da pista agora eu participava da dança, me impunha, não ia me mover se a pessoa não se movesse e algo se transformou.

Esse lance de desviar parece a vida e foi muito emblemático que na primeira vez em mais de 30 anos quando finalmente decidi que também pertencia a calçada, uma mulher branca se sentisse no direito de gritar para me por no meu lugar. Parece o Miss Brasil. Parece Charlottesville. A calçada é a empresa, a universidade, os restaurantes, os lugares onde estamos mas não querem que a gente esteja. O grito daquela mulher branca é o grito daqueles que não querem compartilhar esses espaços e que não percebem que se ela desviar um pouco podemos seguir nosso caminho, cada uma para o seu lugar.



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